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“A ajuda internacional não se vê, não se come nem se bebe, só se escuta”

17 de janeiro de 2010

Acordamos bem cedo, após uma noite ainda repleta de pequenos tremores, na certa muito menos sentidos por nós do que por haitianos que têm suas casas por um fio. Terminamos de arrumar nossas coisas, nos despedimos do grupo do Viva Rio e dos haitianos que estavam na casa, como o Roudy, nosso incrível “pwofesè kreyòl”.

Subimos no Kia branco e seguimos pra Pétionville, em direção à garagem da Caribe Tours, o primeiro lugar onde paramos no Haiti. Como o caminho era inclinado, o cenário não era diferente do que temos visto desde o dia 12 de janeiro. Casas no chão, pessoas em trânsito constante, comércio nas ruas, as “dames sara” levando imensos sacos na cabeça e, dessa vez, alguns caminhões da ajuda internacional em desfile.

Chegamos à garagem da Caribe Tours e embarcamos em direção a Santo Domingo. No caminho, a solidariedade entre os haitianos que víamos foi destacável, feiras sendo improvisadas, distribuição de água, organização em torno dos “tap-taps” que pareciam buscar uma saída numa outra cidade.

Qual não foi a surpresa quando passamos em frente ao QG da Minustah (ONU). Vários dos carros, caminhões e tanques estacionados numa paisagem desértica do subúrbio de Porto Príncipe…

Dentro do ônibus, alguns de nós choravam em silêncio. Um choro de despedida e ao mesmo tempo de compromisso. Compromisso não com uma embaixada e uma ajuda internacional que se mostra até agora tímida, titubeante e autocentrada. Como relata um haitiano num jornal da República Dominicana, “a ajuda internacional não se vê, não se come nem se bebe, só se escuta”.

Rodrigo Charafeddine Bulamah

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Nota sobre a reacao do assessor Joao Leme

16 de janeiro de 2010

Antes de mais nada, queremos dizer que estamos bem, ao contrario da esmagadora maioria dos haitianos, os unicos protagonistas desta tragedia. Seguimos o conselho de nossa embaixatriz, e viemos por nossa propria conta para a Republica Dominicana. Acabamos de chegar a Santo Domingo.

Nao queremos dar um destaque desnecessario ao que afetou um pequeno grupo de estudantes e um professor da Unicamp em meio a tragedia haitiana. No entanto, acreditamos ser importante revelar a atuacao de quem, naquele momento, dizia responder pela embaixada. Nao se trata de fofoca de blog, como disse o assessor Joao Leme, mas do relato de um grupo de 9 pessoas que tinha recebido a orientacao de se dirigir a embaixada e que foi surpreendido por uma reacao indigna de  alguem que ocupa uma posicao tao importante num momento como este.  E que conste, relatamos apenas aquilo que nos dizia respeito. A senhora embaixatriz fez comentarios politicos sobre a situacao do Haiti preocupantes, e que nao foram por nos revelados pois acreditamos que poderia ter um efeito nao desejado num momento como este. Apenas descrevemos o que ela nos disse. `voltem como vieram, nao temos nenhum compromisso com a unicamp, nao temos nada com a unicamp`.

A embaixatriz nao assumiu nenhum risco especial ao nos procurar. Ela procurou, sim, todos os brasileiros, o que nao era mais do que sua obrigacao, e andou pelas ruas de Porto Principe cercada de fuzileiros brasileiros. Nos ultimos dias, andamos, sim, pelas ruas de Porto Principe, e sem escolta ou seguranca. E nos surpreendeu o civismo e a docura no povo haitiano. A embaixatriz nao se arriscou quando nos procurou. O que ela fez, sim, foi um show sem previo aviso. Nao queremos tratamento privilegiado, de forma alguma. Queremos um tratamento respeitoso das autoridades brasileiras seja la onde nos encontremos, que nao foi o que tivemos.

Insistimos, nos preocupamos muito nao conosco – sobrevivemos, estamos bem, nao passamos fome nem sede, como a maioria dos sobreviventes no Haiti – mas com o Haiti, pais onde o Brasil vem assumindo um protagonismo sem precedentes.  Nos pergutamos legitimamente se aqueles que capitaneiam a missao diplomatica neste pais sao dignos da grandeza deste mesmo pais. O desrepeito a nos dirigido corresponde a uma fracao minina daquele que parece ser dirigido ao Haiti. O fato de ajudarmos o Haiti nao diminui a dignidade deste pais e de seu povo.  Esperamos que a ajuda dos brasileiros ao Haiti seja feita com a humildade que toda a atuacao de ajuda exige, e nao com a arrogancia e prepotencia que observamos em `nossa` embaixatriz.

Omar Ribeiro Thomaz, Otavio Calegari Jorge, Diego Bertazzoli, Werner Garbers, Joanna da Hora, Cris Bierrenbach, Daniel Santos, Rodrigo C. Bulamah, Marcos  Rosa

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O cheiro da rua

16 de janeiro de 2010

Mais estranho do que sobreviver ao tremor foi sobreviver às imagens nas quais fomos jogados. Um homem sem pele correndo, as pessoas desesperadas cantando sua fé, poeira encobrindo as esquinas, chamas erguendo-se a um quarteirão de nós. Muitas construções vieram abaixo, Caminhávamos em meio aos mesmos escombros que hoje exalam um odor de morte.

Durante todos esses dias a população não teve onde sepultar seus mortos. Os defuntos foram deixados na rua, enquanto o rádio instruía que os cadáveres deveriam ser tratados com cloro e vinagre, embalados em sacos plásticos e deixados em lugares secos. Os cadáveres que puderam ser retirados dos escombros foram tratados dessa maneira. Nas esquinas da cidade apareciam corpos que as moscas disputavam.

Muitos mortos, no entanto, não puderam ser retirados dos escombros. A população, que hoje nos chama para reclamar de abandono da comunidade internacional, foi se afastando desses lugares – com o calor os corpos parecem ter fermentado. Fato é que o espaço foi envolvido num vapor fétido.

Hoje, pela primeira vez os mortos começaram a sumir das esquinas. Os montes de defuntos, que aguçaram a imaginação de um jornalista fanático por barricadas e protestos, estão sendo recolhidos por tímidos caminhões brancos.

Os corpos sob os escombros, no entanto, continuam intocáveis. Nesse cenário caminham homens e mulheres de uma força que me deixou envergonhado. Nós, que estamos numa casa inteira fomos indagados com preocupação se estávamos bem.

Uma família em frente a uma casa arruinada fazia piada conosco, chamava-nos para conversar, queria mostrar-nos o lugar onde viveram. Outros nos viam com câmeras e pediam para mandar um recado para o mundo dizendo que estavam abandonados.

Não é a destruição que mais assusta aqui, é o abandono. Não sabemos até quando essa harmonia pode durar sem água e sem comida para todos. Muitos estão morrendo por falta de cuidados, outros reúnem numa toalha medicamentos e materiais médicos para ajudar os compatriotas. São poucos os que têm remédios e muitos são os que precisam de ajuda.


Numa esquina em que viramos, fomos surpreendidos por um grupo de homens jogando pedras na parte de trás de um caminhão. Assustamo-nos e queríamos voltar, mas o lugar para onde íamos pedia que passássemos por ali. Um haitiano que percebeu nosso dilema nos disse – não tem problema, aquele é o caminhão que recolhe os mortos. Ele, no entanto, está deixando de recolher os defuntos que estão naquela esquina e as pessoas estão muito revoltadas. Estávamos há um quarteirão e o cheiro da esquina já nos tocava.

Passamos em paz pelo caminho, mais a frente um homem passou carregando um cadáver e as pessoas nos saldavam ou compravam flores para seus mortos. A vida tenta continuar – que a comunidade internacional entenda que sem ela isso não durará muito tempo.

Depois de sobreviver a uma tragédia é preciso reaprender a viver. Essas pessoas me parecem grandes professores.

Marcos Rosa

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Povo Impressionante

16 de janeiro de 2010

Quando era pequeno, meu pai costumava dizer: quando ouço Bach, me sinto mais próximo a Deus. Eu, por ser muito pequeno, apenas ria e achava graça da afirmação contraditória.

Cresci. Também ouço Bach e também me sinto próximo a Deus, apesar de ser ateu.

Em três dias nunca estive tão longe e tão próximo de Deus. Momentos após o terremoto, uma das coisas que mais desejei foi um geólogo ou qualquer um que pudesse me tranquilizar dizendo que aquele tremor havia sido o mais forte.

No momento em que escrevo este texto, no entanto, nunca me senti tão próximo a Deus. Os cânticos das senhoras na porta de nossa casa me arrepiam até os ossos.

É difícil entender porque agradecer diante de tanta destruição, mas não é difícil perceber que estas cantorias fazem parte da solidariedade e da cooperação dos haitianos, que transformam qualquer ajuda internacional, ainda inexistente, em mera figurante.

Que povo impressionante.

Otávio Calegari

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Nossa embaixatriz: notas sobre a atuação diplomática

16 de janeiro de 2010

Após conversar com nossos colegas do Viva Rio, diante da chegada de novos quadros desta organização em Porto Príncipe e em função de uma situação volátil, que muda a cada instante do que diz respeito ao acesso à água e comida, optamos por pedir abrigo à embaixada do Brasil. Diga-se de passagem, há dias amigos e parentes do Brasil insistem em que deveríamos recorrer à embaixada. Afinal, somos um grupo de brasileiros que viu seu trabalho no Haiti interrompido pela violência do terremoto, e estamos na expectativa do que fazer: ficamos e ajudamos? Podemos ajudar? Ou devemos partir para o Brasil em meio uma situação incerta e que se agrava todos os dias? E se decidimos partir, como partir? Seguindo a orientação de nossos colegas do Viva Rio, nos preparamos para seguir para a embaixada hoje pela manhã. Acordamos às 6 da manhã, após mais uma noite dormindo no jardim, e nos preparamos para esperar o veículo que viria nos buscar.

Ela irrompeu o portão do Viva Rio por volta das 8:30 da manhã e pediu que nos chamassem. Trazia um vestido curto algo entre o roxo e o verde, quase um furta cor, apresentava uma expressão rígida e abatida. Na certa estava tocada pelos últimos eventos. Os cabelos devidamente penteados pra trás, uma maquiagem excessiva e um colar de ouro ostensivo. Enquanto permanecíamos na sombra, ela se manteve no sol. Aos poucos, enquanto sua proeminente testa e suas bochechas se enchiam de suor, ela discorreu sobre grandes temas, aliando ciência, religião e política de maneira única. Em poucos minutos, a embaixatriz do Brasil no Haiti explicou por que um rabino, as placas tectônicas, seu marido, os mortos e o Brasil eram interdependentes.

Ela não nos perguntou nada. Não sabia quem éramos, ou o que fazíamos aqui. Quando soube que de um grupo da Unicamp se tratava, não titubeou: “A EMBAIXADA NÃO TEM NENHUM COMPROMISSO COM A UNICAMP. O EMBAIXADOR PROIBIU QUE FOSSEM HOSPEDADOS EM NOSSAS DEPENDÊNCIAS. ELE É O EMBAIXADOR, ELE MANDA; SE HOSPEDAMOS VOCÊS TEMOS QUE HOSPEDAR TODOS”.

E seguiu, com pérolas: “A EMBAIXADA NÃO VAI EVACUAR NINGUÉM PORQUE EU NÃO VOU SAIR DAQUI. VOCÊS DEVEM VOLTAR PARA O BRASIL COMO VIERAM. VOCÊS SABEM ONDE FICA O AEROPORTO, COMPREM PASSAGEM; VOCÊS SABEM ONDE FICA A RODOVIÁRIA, DE LÁ SAEM ÔNIBUS PARA A REPÚBLICA DOMINICANA”. E prosseguiu com a máxima: “NÃO TEMOS NENHUMA RESPONSABILIDADE SOBRE VOCÊS. VOCÊS ESTAVAM NO LUGAR ERRADO NA HORA ERRADA, SINTO MUITO”.

Poderíamos reproduzir detalhes de suas observações sobre a situação atual do Haiti ou sobre a política haitiana. Não o fazemos porque, com franqueza, sentimos vergonha alheia. Seu auto-centramento e sua falta de sensibilidade quanto aos impasses vividos pelos haitianos não fizeram nada além de nos constranger: ela pode ocupar a posição que ocupa?

Nos restringiremos àqueles elementos que nos afetam diretamente: pode uma embaixatriz simplesmente dizer “VOCÊS ESTÃO PROIBIDOS DE SE HOSPEDAR NA EMBAIXADA”? Ela não nos perguntou nada, não sabe da nossa situação, nada. Suponhamos que tivéssemos passagens de avião saindo de Porto Príncipe. Como chegar ao aeroporto? Não há transporte, não há combustível. Porto Príncipe é uma cidade grande e destruída. A “rodoviária”, na verdade, não existe, é a garagem da Caribe Tours, de onde saem os ônibus diários para Santo Domingo, e fica em Pétionville. Como chegar a Pétionville? Há lugares no ônibus? Os telefones estão colapsados. Pode o Brasil ter como representante neste país alguém que manifesta tamanho descaso por seus concidadãos abdicando das obrigações mínimas de uma embaixada em qualquer lugar do mundo? O que o Haiti pode esperar de embaixador e embaixatriz que atuam desta maneira? O que aconteceu conosco não tem a menor importância. Só é revelador do lugar que o Haiti parece realmente ocupar no universo de nossas relações internacionais.

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Devido ao fato de termos postado este texto hoje pela manha alguns minutos antes de viajarmos, pois nao tivemos acesso a internet ontem (dia 15/01), esquecemos de colocar nossas assinaturas. Assinam este texto:

Omar Ribeiro Thomaz, Otavio Calegari Jorge, Diego Bertazzoli, Werner Garbers, Joanna da Hora, Cris Bierrembach, Daniel Santos, Rodrigo C. Bulamah, Marcos  Rosa

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Entrevista com cônsul

15 de janeiro de 2010

Pra termos idéia do que é a “cooperação” internacional:

http://noticias.uol.com.br/ultnot/multi/?hashId=consul-haitiano-afirma-que-o-africano-em-si-tem-maldicao-04021B3266D4990326&mediaId=1035326

(link indicado por Ana Lucia Araujo)

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Guy Dallemand

15 de janeiro de 2010

Em novembro de 1998, vim ao Haiti pela primeira vez. Meu amigo Jean Phillipe Belleau me pegou no aeroporto e me levou diretamente a casa de Guy Dellemand, professor de sociologia e antropologia da Université d´État. Fiquei encantado com sua sabedoria, sua erudição, seu senso de humor, sua hospitalidade. Desde então, Guy transformou-se numa figura central para mim em Porto Príncipe, ao lado de outros tantos amigos haitianos, que me revelaram facetas fascinantes deste país e de suas gentes.

Em viagens posteriores, mais de uma vez, fiquei hospedado na casa de Guy Dallemand. Sempre me encantou sua casa: um dos belos casarões de Porto Príncipe, daqueles de madeira e ferro que dominaram a arquitetura da capital entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX. As grandes portas abertas para um jardim que da a Ruelle Roy, assim como a varanda do quarto onde sempre me hospedei, no primeiro andar; uma mesa de jantar num terraço que dava para o jardim, e a cozinha aberta para o quintal. Grandes janelas, sombra, boa circulação de ar. As paredes com belos quadros haitianos, as estantes com livros preciosos. Antenor Firmin, Thomas Madiou, Jean Price-Mars… conversei sobre eles com Guy, assim como sobre L´Ouverture, Dessalines, Cristoph. Com Guy entendi a imensa frustração dos líderes haitianos ao longo do século XIX.

Logo que cheguei a Porto Príncipe semana passada, levei minha equipe para conhece-lo. Queria rever meu amigo, ver sua casa, e apresentá-lo aos membros de minha equipe que deveriam ter a oportunidade preciosa de escutá-lo. Quando chegamos, Guy lia seu jornal na varanda, e nos recebeu com alegria e carinho. Nos sentamos a sua volta, e ele nos contou da construção da casa, da vinda de sua família de Les Cayes para Porto Príncipe. Nos falou ainda de sua mãe, primeira feminista haitiana, de sua militância no associação ilegal de estudantes da universidade nos anos 1950, de sua ida a Moscou com salvo conduto assinado por Jean Price-Mars, de seu encontro com François Duvalier, de sua vida como exilado na Argentina, de sua ida ao Zimbábue quando da independência deste país…

O terremoto foi na terça feira por volta das 17:00h. Desde então não tinha notícias de Guy. Passei o dia inteiro de ontem angustiado, pensando nele e nos meus outros amigos. Hoje quando saímos, fomos em direção ao centro a pé. No caminho da casa de Guy tivemos mais profundamente o impacto da devastação: mortos dispostos pelas calçadas ou ainda em meio a escombros, feridos à espera de auxílio, solidariedade nas ruas, pessoas que vão e vem. A alimentação de todos é garantida pelas senhoras que controlam o comércio informal, as dam sara, e por aquelas que controlam as cozinhas de rua, o chein jambe.

Na esquina da Ruelle Roy, uma mulher morta estava no topo de um prédio ruído. Estava ali desde terça-feira, como tantos outros. Descendo a rua, vimos o belo Centre d´Art, referência para a arte haitiana, centro propulsor de uma verdadeira revolução artística, possuidor de uma coleção absolutamente extraordinária, destruído. Alguns quadros podem ser vistos da rua, nas poucas paredes que restaram; os outros se confundem com entulho. Continuamos descendo, e quando a chego a casa de Guy o cenário de destruição se repete. Como tantas outras belas casas, estava parcialmente destruída. O quarto onde dormia não existia mais. Angustiado, perguntei às pessoas da rua sobre Guy Dallemand, se estava vivo, e me confirmaram que estava vivo e bem. Disseram para ir pela parte de trás, que o encontraria no quintal. Alívio: lá estava Guy Dallemand, sozinho, sentado de pijama no quintal de sua bela casa destruída. Nos recebeu com alegria, e fez questão de pegar bancos para que nos sentássemos em seu quintal, eu, Cris, Rodrigo, e Flávio, professor de capoeira do Viva Rio. Falamos da catástrofe que se abateu sobre o Haiti, e suas conseqüências, sobre a impossibilidade de reconstruir sua casa, e sobre seu futuro incerto como professor à beira da aposentadoria pela Université d´État. Deverá buscar ajuda de sua família, irmãos e sobrinhos. Seu filho vive na República Dominicana, e Guy não havia conseguido entrar em contato com ele ainda. Logo me dispus a enviar-lhe um email, comunicando que estava bem. Após esta etapa da conversa, passamos a outra: política nacional e, por fim, e antes de partirmos, Guy foi dentro de sua casa procurar o nome de uma palavra em português que ele desconhecia. A palavra era “roteiro”. Nos despedimos. Amanhã, e depois, e enquanto estiver aqui, visitarei Guy todos os dias.

Omar Ribeiro Thomaz

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Haitis

15 de janeiro de 2010

As impressões que tivemos dos haitianos que conhecemos até hoje, tanto dos que conhecemos de forma mais próxima (caseiros, funcionários, motoristas, etc) quanto os de conversas mais rápidas (entrevistados, vendedores e pessoas que sempre estão pelas ruas, amigos de conhecidos nossos etc.), são de que fazem parte de um povo criativo e que, mais do que se supõe, conhecem seus heróis nacionais como se estes estivessem vivos. Povo que foi e é subestimado e mal compreendido (assim como os pobres em geral são) e que foi e é omitido e deturpado na história oficial dos livros e na mídia. Povo que é forte, que está sempre em movimento, se virando, que é corajoso – não sei se por sentir que não tem o que perder, dado que seu orgulho e sua História ninguém lhes tira.

Como esquecer que foi o segundo país da América, não por acaso, a conquistar a Independência e o primeiro a conquistar o fim da escravidão (mais 15 e 100 anos antes do Brasil, respectivamente)? Como esquecer que é um país pequeno geograficamente, mas solidário, que enviou apoio à Independência Cubana, às transformações por soberania no Congo e na Grécia (já em 1830), e em outros momentos importantes?

Mas há muitas imagens de Haitis que historicamente se criaram e se criam por aí. Para mim,  muitos desses aspectos positivos apenas se explicitaram e se intensificaram com o desastre… Um dos mais impressionantes, como já disseram, foi o chen jambe (espécie de marmitex na rua) que não teve aumento de preços, o que nos mostra como o interesse alí não é abusar da desgraça para explorar o próximo. Até os saques que aconteceram parecem se justificar no fato do total abandono da população e no fato de que se os alimentos forem logo consumidos garantirão a sobrevivência da maioria até chegar ajuda.

Mesmo com a ocupação de anos da ONU aqui, ainda não se investiu em áreas essenciais e não imediatistas, como educação e soberania alimentar dessa população, o que os ajudaria a se reerguer de sua pobreza cotidiana e com suas próprias forças.

Não sabemos onde estão, nesses dois primeiros dias logo após o desastre, enquanto ainda deve haver vítimas vivas e os corpos estão nas ruas, os mais de dez mil soldados da ONU que já estavam permanentemente no país. Apenas tivemos informações de pessoas que viram alguns deles em Pétion Ville, cidade de padrão mais alto, ao lado Porto Príncipe.

Um grande intérprete do país, Louis Marcelin, com o qual conversamos antes do terremoto, nos disse que a população daqui foi acostumada a não ter onde morar. Naturalmente pensei nos escravos sendo trazidos à força a essa ilha, a qual, aliás, sempre foi também um espaço de passagem nas rotas marítimas, além de ter sido a colônia mais rica da França. Pensei nas diversas pessoas que aqui nos disseram que o que sempre faziam era andar em busca de algo, de fazer bico, atrás de comida, de arrumar trocados em lugares já superlotados de outros transeuntes semelhantes. Louis Marcelin comentou que quando se mora, aprende-se algumas coisas sobre o gerir seu próprio espaço, o que, em termos de Estado, também não foi possível no Haiti colônia e nem durante as seguidas ocupações (EUA, de 1915 a 1934 e depois a da ONU no final do século XX). O povo aqui realmente se acostumou a lutar para sobreviver e auto-organizar-se bem antes desse último desastre… e enquanto isso, por mais de uma vez, enquanto invadiam esse país, estrangeiros achavam que tinham tal população sobre controle e que esta não teria capacidade para se governar.

Louis Marcelin fez algumas perguntas para pensarmos: num país onde você precisa se dissociar (de ocupantes) para existir, o que é morar? O que é morar num país onde você precisa se aglomerar só pra existir? Como ter individualidade?

É óbvio que esse povo é forte e convive com as tragédias (povo que hoje mesmo já vimos começar, sozinho, do seu modo, a se reerguer). Dentro de seus limites, eles têm feito o máximo. A questão que historicamente se coloca aqui é a respeito de quem vem de fora e que idéia traz (geralmente a de subestimá-los e apenas culpá-los por sua pobreza, quando não de explorá-los), e isso, hoje, pode se dar numa simples foto inoportuna ou que só se volte ao sensacionalismo.

Se quiserem realmente ajudar precisamos que fiquem preocupados definitivamente não com os brasileiros que estão aqui, mas com o povo haitiano. Nós retornaremos e veremos nossos familiares e amigos, e não teremos preocupação com comida, água, moradia… .muitos haitianos, não. Aqui no Haiti vemos quanto o capitalismo e a economia hoje nos tornam completamente interligados e que, tão pertinho daqui, para Miami poder existir (ou a nova bola da vez, o Brasil, “em desenvolvimento”) foram necessários muitos Haitis por aí…

Werner Garbers

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Roupa lavada e Jean Jacques Dessalines

15 de janeiro de 2010

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Guy Dallemande

15 de janeiro de 2010